domingo, 11 de agosto de 2013

Histórias da Dona Têca - conto n° 1


Rasga Mortalha

De todas as superstições que minha avó teve, a da Rasga-mortalha era a que mais a amedrontava. Se ela ouvisse o canto da coruja, podia jurar que no dia seguinte um parente ou conhecido seu morreria.
A coruja, mais conhecida como rasga-mortalha tinha justamente esse nome por que o seu canto significava agouro dos fortes. Minha avó não duvidava disso. E ela dizia ter os devidos fundamentos que validassem sua crença. Não, ela nunca aceitou a ideia de que a pássaro que previa a morte era apenas uma de tantas outras superstições.
 O fato é que em Palmeira dos Índios, como em outras cidadezinhas do interior de Alagoas, são comuns as notas de falecimento. Os familiares do falecido contratam um carro de som para andar pelas ruas comunicando quem foi o fulano que morreu, como ele era mais conhecido, o nome do pai, da mãe, dos filhos (se tivesse) e outros parentes.
E não tinha um dia que o carro de som não passasse nas ruas da cidade para anunciar a morte ou missa da morte de algum conhecido da minha avó. Conhecido sim, porque Terezinha podia jurar que sabia de quem se tratava naquele anúncio que estava passando. “Eita, Dona Margarida, aquela minha vizinha na época em que eu era solteira, morreu”, “Seu Jorge, aquele senhor que trabalhou com Cícero, faleceu”, dizia. Ela ouviu muitas notas de falecimento em toda a sua vida, o carro de som passava em frente a sua casa. Quase todos os dias morria gente na cidade, e o carro de som danava-se a anunciar. Quando não era morte, era o convite para a missa de sétimo dia, do primeiro mês ou do primeiro ano de falecimento.
Dona Terezinha tinha uma espécie de obsessão pela rasga-mortalha e pelo carro de som. Quando este passava na rua, com o anúncio: “Nota de falecimento. Convite.” ela interrompia qualquer atividade para correr até a janela e ouvir mais de perto que acabara de morrer. Quando o anúncio era de missa, ela simplesmente sacudia os ombros, decepcionada pelo aviso da coruja não ter sido confirmado. Mas isso não significava que a previsão tinha falhado, pois naquele dia ainda haveria morte, por mais que o carro de som não anunciasse, já que nem todo o mundo tinha condições de pagar o anúncio.
Para ela a rasga-mortalha anunciava a morte dessas pessoas de graça. Se o carro anunciava com o som, o pássaro anunciava com os gritos, e aquele servia apenas para confirmar este. E ai de quem dissesse ser mera superstição! Ela não aceitava que assim como o carro de som passava todos os dias, o pássaro também cantava todos os dias, sendo isso tudo apenas coincidência. Sua história prevalecia sobre qualquer outra explicação racional. 

quarta-feira, 7 de agosto de 2013


A escrita na escola: concepções de língua, sujeito e texto adotados.



O ensino de leitura e produção de textos na escola, bem como o de língua portuguesa, varia de acordo com as definições de língua, sujeito e texto que se adotam. No geral, a escola tem centrado seu ensino baseada numa concepção de língua estruturalista, em que a gramática normativa assume o centro das atividades realizadas em sala de aula.
Marcushi (2008) afirma que a escola adota um ensino de língua descontextualizado na medida em que o texto é concebido como um artefato linguístico acabado. Esse mesmo autor defende que o ensino deve tomar a língua como o próprio lugar de interação entre os interlocutores e texto como evento comunicativo.
Ao entender esse posicionamento como o atual da Linguística Textual, o autor faz uma retrospectiva das noções de sujeito de acordo com as principais teorias hoje existentes no campo da Linguística. São três as noções verificadas: 1) Sujeito consciente e dono do seu projeto de dizer, bem como língua como objeto autônomo (visão estruturalista); 2) Sujeito determinado por ideologias, portanto assujeitado e determinado pelo inconsciente (perspectiva da Análise do Discurso) 3) sujeito interacional, participante da produção de sentido (noção defendida pela Linguística Textual).
Para um ensino de leitura e produção textual contextualizado, a posição adotada pelo professor deve ser a de sujeito interacional (3), pois as práticas comunicativas efetivas nos gêneros textuais não se resumem ao conhecimento do código (1) e nem apenas na determinação do inconsciente (2). Elas são negociadas entre produtor, leitor e o próprio texto. Nesse sentido, a compreensão é dada por um tripé de participantes e os critérios de textualidade, conforme aponta Koch (2003), ajudam a entender o texto como evento comunicativo onde convergem ações linguísticas, cognitivas e sociais.
Ao trabalhar com o texto numa perspectiva cognitiva e sociointeracional, torna-se necessário a inclusão dos gêneros textuais como sendo “forma relativamente estáveis de enunciados historicamente situados” (KOCH 2012, p. 68)). Isso significa dizer que os gêneros permitem que o aluno atue sobre as práticas comunicativas e entenda que o eles, embora apresentem aspectos formais, abrem espaço para a criatividade. E o que vai garantir a efetividade dessas práticas é o propósito dos gêneros textuais escolhidos. Os gêneros subjazem às práticas sociais e são por elas determinados.
Assim como a visão de texto adotada por esses autores, em que aquilo que mais importa é a funcionalidade da língua (seu uso real, e não a forma), o ensino de língua portuguesa e de leitura e produção de textos deve fornecer subsídios (nesse caso, os gêneros textuais são uma importante ferramenta) para que o estudante domine o uso da língua nas diversas práticas comunicativas e produzam textos com propósitos. Os processos inferências têm um papel fundamental na compreensão de textos, pois, como aponta Marcuschi (2008), é apenas uma parte do sentido do texto que está em sua superfície. A compreensão correta se dá pela ativação, por parte do leitor, de uma série de conhecimentos que o produtor pressupôs como compartilhados. Somente levando em consideração os conhecimentos teóricos mais atuais é que o ensino será contextualizado, especialmente àqueles conhecimentos voltados ao estudo científico do texto.





REFERÊNCIAS:

KOCH, Ingedore; ELIAS, Vanda. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo. Contexto, 2012.
KOCH, Ingedore. Desvendando os Segredos do Texto. São Paulo. 2. Ed. Cortez, 2003

MARCUSCHI, Luiz Antonio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo. Parábola, 2008.






quinta-feira, 25 de julho de 2013

Como se deve ler um livro teórico?

Um dos principais problemas enfrentados por estudantes que acabaram de ingressar no ensino superior é a de entender como se deve prosseguir à leitura de livros teóricos. Este texto objetiva esclarecer a maneira  de se obter uma proveitosa leitura de teóricos de qualquer área do conhecimento. 

A leitura, como é sabido, possui diversas finalidades. Da leitura por simples diversão à leitura de estudo existem técnicas que permitirão que seus objetivos sejam atendidos. No entanto, ler um romance, um livro de ficção científica e um livro teórico exige abordagens diversas. Mesmo ao ler por diversão pode-se aplicar estratégias diversas, uma vez que a leitura de um clássico requer mais esforço e concentração do que a leitura de um livro de ficção científica. 

Em geral, os clássicos, a depender dos propósitos da leitura, devem ser lidos mais de uma vez. Um estudante de Letras, por exemplo, precisará ler livros como Dom Casmurro, Vidas Secas e A Hora da Estrela ( e vários outros!!!!!!) no mínimo duas vezes. È porque uma só leitura não é suficiente para que  ele compreenda as estratégias utilizadas por esses autores para prosseguir na narrativa, o que os leva a optar por determinado adjetivo ou como se dá a disposição dos verbos na estrutura do texto. Contudo, quem quiser apenas fazer uma única leitura dos clássicos - desde que não seja estudante de literatura- estará apenas lendo por diversão, não estando apto para fazer análises. 

O mesmo não acontece com os livros teóricos, os quais, obrigatoriamente, necessitam ser lido mais de uma vez. Não existe outra forma de compreender as ideias dos autores a não ser fazendo uma primeira leitura (ininterruptamente), de modo que ao final da leitura se possa responder ao seguinte questionamento: Qual a ideia geral do autor do livro? A partir daí, surge-se a necessidade de uma segunda leitura, dessa vez observando-se as palavras-chave presentes nos parágrafos e com consulta ao dicionário. O leitor deve pesquisar o significado de expressões técnicas, bem como fazer anotações e sublinhas as ideias mais relevantes do autor. Até aqui o leitor já conseguiu fazer um estudo acerca do tema do livro, de modo que uma terceira leitura o ajude a ter domínio das ideias dos autores estudados, uma vez que só assim ele poderá confrontar as ideias estudadas com a de outros teóricos e com a suas próprias ideias. 

Ler três vezes o mesmo livro é uma tarefa cansativa. Não se consegue dominar teorias com apenas uma leitura, principalmente quando o objetivo do estudo é a produção de artigos. No entanto, se o leitor quiser ler um livro teórico apenas para conhecer e ter uma ideia geral a respeito da teoria, DUAS lidas bastam! Não esquecer: apenas uma leitura de um livro teórico se mostra insuficiente para os seus possíveis objetivos, pois ninguém vai ler teoria por diversão. A gente lê pra aprender a falar dela, e isso exige pesquisa.  

terça-feira, 9 de abril de 2013

INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS-QUESTÕES

O conceito de "retorno do reprimido", descrito por Sigmund Freud pela primeira vez em 1895, é um mecanismo de defesa segundo o qual os conteúdos reprimidos, expulsos da consciência de uma pessoa, tendem a reaparecer constantemente. Três tragédias ocorridas sucessivamente no Rio de Janeiro nos últimos dias parecem sintomas de algum distúrbio oculto. Na manicure que asfixiou sem dó um menino de 6 anos com quem convivia, no estupro brutal de uma turista americana que pegou uma van em Copacabana e na agressão incompreensível que teria provocado a queda de um ônibus de cima de um viaduto expressam-se os sintomas de um antigo mal-estar de nossa civilização: a violência.
Universitário que agrediu o motorista tinha antecedentes - Marcos de Paula/Estadão
Marcos de Paula/Estadão
Universitário que agrediu o motorista tinha antecedentes
Nascido em São Paulo e radicado no Rio, o filósofo e psicanalista André Martins Vilar de Carvalho vê nesses acontecimentos a ponta do iceberg do autoengano nacional. "A propaganda enganosa da pacificação do Rio é a mesma do Engenhão construído há só cinco anos, que corre o risco de cair na cabeça da multidão", compara. "O Brasil vive uma espécie de capitalismo desenvolvimentista selvagem, que no fundo não quer gastar dinheiro com o social."
Doutor em filosofia pela Universidade de Nice e em teoria psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde é professor associado, Martins diz ter a sensação de que tudo é feito hoje no País apenas para montar uma fachada que esconde nossos problemas mais profundos. Isso é perigoso e "favorece junto a pessoas com menos estrutura psíquica a ideia de que esta é uma terra de ninguém, onde tudo pode ser feito, inclusive crimes hediondos". O professor sustenta que as psicopatias, embora individuais e independentes de formação ou classe social, relacionam-se inevitavelmente ao descaso persistente com a primeira infância em nosso país.
Na entrevista a seguir, o autor de Pulsão de Morte? - Por uma Clínica Psicanalítica da Potência (Editora UFRJ, 2010) e O mais Potente dos Afetos: Spinoza e Nietzsche (Martins Fontes, 2009) vê na violência que emerge no cotidiano nacional os sinais da modernização imperfeita do País - em especial a marca persistente da escravidão, que "naturalizou" o fosso social brasileiro e a cultura do privilégio e do interesse mesquinho, que se manifestam tanto na corrupção política quanto nos instintos particularmente animais de certos empresários.
O estupro de uma turista dentro de uma van e o assassinato de um menino de 6 anos pela manicure que frequentava sua casa parecem ter feito o Rio despertar do sonho pacificador das UPPs para uma espécie de ‘retorno do reprimido’ da violência. O que houve?
Vejo as UPPs não como uma política ideal, mas possível, que age de maneira razoavelmente eficaz contra o crime organizado e o tráfico de drogas. Acontece que a violência que emerge agora não é fruto desse contexto. No caso da van, foram uma série de assaltos e estupros cometidos por três indivíduos e a manicure, uma mulher que cometeu o crime sozinha. O que vale colocar em questão aqui é esse "sonho pacificador", é a política local transformar uma iniciativa bem-sucedida em uma grande propaganda de um Rio de Janeiro pacificado. Isso é que é falso. Faço uma analogia, guardadas as devidas proporções, com o Engenhão interditado. Às vésperas da Copa do Mundo e da Olimpíada, a coisa é apresentada como se o Rio não tivesse mais problemas, virou uma cidade organizada, valorizada... Aí um estádio que foi construído cinco anos atrás corre o risco de desabar na cabeça da multidão. Descobre-se que a construção foi malfeita, obviamente por algum tipo de superfaturamento - e digo isso sem nenhum cuidado porque acho que é preciso dizer o óbvio. É a mesma propaganda enganosa que assistimos sobre a violência.
O colunista carioca Artur Xexéo escreveu, sobre os últimos acontecimentos, que ‘quando a cidade se olhar no espelho e vir o que ela realmente é por debaixo das muitas camadas de maquiagem e aplicações de botox, talvez descubra como se tornar maravilhosa de verdade’. O Rio e o Brasil padecem de certo distúrbio de autoimagem?
Concordo, inclusive em relação ao Brasil, que vive uma espécie de capitalismo desenvolvimentista selvagem, que no fundo não quer gastar dinheiro com o social, interessando-se pelo lucro a qualquer custo. A violência que escapa nesses dois exemplos, dos rapazes da van e da assassina do menino, é proveniente de indivíduos que refletem um descaso social como um todo. Para usar um termo que tem origem na filosofia política do século 17, o Brasil pode até ter um contrato social, mas ele está muito corrompido. E o que não temos é um pacto social, não existe um discurso de construção de fato de um país para todos. O que existe e, mais triste ainda, é aceito, são interesses individuais ou de pequenos grupos mesquinhos, mas não uma disposição de pensar o coletivo. A ideia do "cada um puxa a sardinha para seu lado" está legitimada socialmente no Brasil.
Então as oportunidades representadas pela organização da Copa do Mundo e das Olimpíadas estão sendo jogadas fora?
Exatamente. Poderíamos estar aproveitando esses eventos para, dentro de um capitalismo minimamente responsável, utilizá-los para captar recursos para melhorias sociais. Todo mundo sabe disso, mas ninguém faz e ninguém cobra. Há um sentimento geral de que tudo é feito no Brasil hoje apenas para montar uma fachada. É algo muito desanimador. E que, no meu entender, favorece junto a pessoas que têm menos estrutura psíquica a ideia de que o Brasil é terra de ninguém, onde tudo pode ser feito, inclusive crimes hediondos.
Na mesma semana, a queda do ônibus de um viaduto durante uma briga banal entre o motorista e um passageiro mostrou até onde os impulsos agressivos do cotidiano podem levar. O que o fato de ambas as tragédias terem ocorrido no transporte público sinaliza?
Esse mesmo descaso com a coletividade. Não é por acaso que o transporte público tanto no Rio como em São Paulo, onde nasci, é tão ruim. E, a partir de um certo nível social ou de idade, ninguém mais quer andar de ônibus, por exemplo, ao contrário do que acontece na Europa ou nos EUA. O universitário que agrediu o motorista já tinha vários antecedentes de violência física. Aquele ônibus já registrava 40 multas, quase a metade por excesso de velocidade. Os motoristas não são fiscalizados e devem cumprir metas de número de viagens diárias. Como motoristas despreparados e sem formação continuam dirigindo? E a responsabilidade dessa companhia de ônibus? Por que não se interessa pela pressão sofrida por seus motoristas, mas ao contrário a exerce e a agrava? No caso dos três rapazes na van, também: se eles já haviam cometido diversos assaltos e estupros, com denúncias registradas inclusive em delegacias da mulher, por que nada foi feito? O mesmo pode ser dito quanto às diversas irregularidades absurdas vigentes no incêndio da boate em Santa Maria no Rio Grande do Sul, quando gestão privada e poder público se preocupavam exclusivamente com o lucro que o negócio gerava. É um problema não só político, mas jurídico. A Justiça brasileira tem que renovar sua forma de funcionar. E Brasília dá um péssimo exemplo com a corrupção, não só do mensalão, que pelo menos foi julgada, mas no sentido amplo da palavra - por sua falta de zelo com a res publica, a coisa pública.
De que maneira as ferramentas da psicanálise ajudam a compreender a violência?
É uma psicopatia grave a dessa moça que sequestrou e assassinou um menino com quem convivia havia três anos. O que se percebe é uma falta de identificação com o outro. Essas pessoas, seja a manicure, sejam os rapazes da van, manifestam uma perversidade e indiferença para com o outro. O processo de identificação com o outro se dá ao longo da vida, mas fundamentalmente na infância. Quando a criança lida com cuidadores hostis a ela, pode separar no processo identificatório - que está na origem da capacidade de se sensibilizar com o outro - aqueles com quem se sensibiliza e outros com por quem não sente nada. A pessoa que desenvolve essa psicopatia pode até nutrir sentimentos em relação à mãe, um amigo ou parente, mas não se sensibilizar, por exemplo, por uma criança de 6 anos que conviveu com ela, como aconteceu no crime da manicure. Ou pelas várias mulheres que esses homens estupraram, com uma violência capaz de quebrar ossos. Isso significa que filhos de classes mais pobres vão estar necessariamente mais inclinados a esse risco do que os ricos que estudaram em bons colégios? Não. Está aí o caso Suzane Richthofen para mostrar. Ou o próprio agressor do motorista do ônibus, que tinha nível universitário. Mas é preciso reconhecer coletivamente a importância desse cuidado na primeira infância - algo que o País não tem feito. Um exemplo é a falta de creches boas e em número suficiente. Aqui, de novo, não basta "entregar" fisicamente tais obras, mas se preocupar com a qualidade do que será vivenciado lá dentro. O mesmo acontece com a educação pré-escolar e no ensino fundamental. É algo gritante e urgente.
Dois dos crimes que o sr. cita tiveram um componente sexual - evidente no caso do estupro, mas presente também na acusação, feita pela manicure, de que estaria sendo assediada pelo pai do menino. Ambos não parecem ter sido cometidos só pelo benefício financeiro. Por que foram então?
Primeiro, não vejo que esses crimes possam ser atribuídos a aquelas pulsões agressivas do ser humano que Freud chamou de pulsão de morte ou destrutiva, ou a uma pulsão sexual vista como fundamentalmente bestial. Três rapazes que sentem mais prazer em violentar mulheres para poder ter uma relação sexual paradoxalmente não estão encontrando o gozo no sexo em si, mas na violência. Uma pessoa minimamente saudável, numa situação dessas, perderia o interesse, acharia deprimente. Muito mais do que expressar pulsões naturais ou bestiais do ser humano, eles estão se excitando sexualmente por uma violência hedionda e atroz contra outra pessoa. Eu vejo como parte dessa patologia comum da não identificação, que gera uma raiva difusa e uma destrutividade por essa vítima que eles não conhecem, como no caso da van, ou que conhecem muito bem, como no caso da manicure. Repito: a não identificação é construída em relações afetivamente precárias da primeira infância, não é "natural" ou instintiva.
Seu trabalho discute a forma como o corpo é manipulado na atual sociedade de consumo. Como a violência se insere nisso?
É outro aspecto, mas que se liga a esse que acabamos de discutir. A propagação, seja por interesses de mercado ou financeiros, de um ideal de corpo perfeito, de felicidade financeira perfeita, de relações sexuais performáticas, cria uma pressão psicológica social que suscita nas pessoas que se percebem distantes desses ideais um mal-estar, que pode se expressar em ressentimento. Que, em casos graves, pode se expressar em violência, destruição em relação a essa sociedade em que elas não se encaixam.
Então, a mistura do déficit social brasileiro com a expansão das possibilidades de consumo tem um potencial explosivo.
Sim. E aí podemos voltar àquele ponto inicial do sonho pacificador não só no Rio de Janeiro, mas do momento econômico do Brasil. Do que a gente está se vangloriando tanto? De que as classes C, D e E possam consumir? Isso é muito bom em vários aspectos. Agora, a possibilidade de consumir vir à frente da sociedade ter um pacto coletivo, sentir-se coletivamente envolvida numa melhor distribuição de renda, com melhorias na saúde, na educação e na moradia, é uma visão deturpada do coletivo. E a violência é uma face disso.
Há diversas explicações para o caráter violento da sociedade brasileira, desde as que culpam o trauma da colonização, as que apontam nossa prolongada escravidão, até o precário acerto de contas com violações cometidas durante a ditadura militar. Qual dos fatores concorre mais, em sua opinião?
Todos concorrem, mas o segundo, no meu entender, é sem dúvida o predominante: a nossa história de escravidão. Porque nos outros dois outros fatores podemos até encontrar aspectos positivos. No caso da colonização, apesar de toda a violência, tivemos a miscigenação, a mistura de raças, que nos trouxe qualidades distintivas. Mesmo em relação à ditadura, com a sua injustiça escandalosa, há o elogiável sentimento brasileiro de não cultivar o ódio ou a vingança. Já a herança escravocrata é particularmente perversa: ela cria um sentimento de desigualdade social aceito de maneira não questionada no Brasil. E também uma perversidade na relação de poder, a ideia de que inevitavelmente vai existir uma elite, que esse fosso de distribuição de renda "faz parte". É um sentimento muito ruim, muito prejudicial para o pacto coletivo de que precisamos.
O componente sexual dessas agressões pode também estar relacionado a essa herança escravocrata?
Sem dúvida. Na escravidão, como se sabe, as negras eram também escravas sexuais. O que difundiu uma percepção de que é legítimo submeter sexualmente o outro à força, de que o sexo não é nem precisa ser algo bom e consensual entre parceiros, um prazer ou uma alegria compartilhados. Isso é cultural, não um comportamento advindo de alguma natureza bestial do ser humano. Nem tem a ver com o sadomasoquismo, que é um jogo compartilhado. Mas com o desprezo pelo outro e o prazer pela violência.
Como o Brasil pode lidar melhor com esse conteúdo violento que parece tentar negar, seja nesse ufanismo pré-Copa, seja sob a eterna fantasia do povo alegre e festeiro?
A tese que defendo é que é inútil para o Brasil tomar a Europa como um modelo civilizatório. A civilização, no sentido europeu do termo, conseguiu combater uma violência primária, direta e sem mediação, ao preço de desenvolver uma violência secundária, que se dá em nome da civilização, de forma institucionalizada - e cujo maior exemplo são as guerras. Há menos violência nas ruas, mas mais violência contida que estoura no momento de uma guerra. No Brasil, a gente manteve uma violência primária que vem junto com o nosso tão propalado caráter cordial.
Que não é necessariamente positivo, como alguns interpretam.
É isso. A cordialidade, como bem definiu Sérgio Buarque de Holanda, vem da palavra "coração": é uma não mediação social. Algo assim: "Olha, vou ser muito gentil com você, se você for comigo. Mas se você não for, vou ser muito violento". É o contrário do que ocorre na Europa, onde predomina a polidez: mesmo pessoas muito zangadas e com raiva das outras, mantêm uma delicadeza dissimulada no trato. Enquanto a cordialidade aproxima, para o bem e para o mal, a polidez afasta, para o bem e para o mal. Penso que essa reflexão pode orientar o Brasil no sentido um projeto de coletividade: não vale a pena a gente aspirar a um processo civilizatório tal como o da Europa, pois muito dificilmente a gente vai aceitar essa imposição da lei, no sentido psicanalítico, pelo preço que isso acarreta. Então, insistir nisso é insistir num provincianismo brasileiro de pensamento que considera que o modelo dos outros é bom em todos os aspectos e o nosso ruim em todos os aspectos. Porém, para que serve observar esses modelos? Para tentarmos entender que um certo respeito às instituições, um pouco de polidez, e ter um pacto social de projeto de coletividade é preciso - mas isso pode ser feito a nossa maneira. Mantendo o aspecto cordial do povo, que aproxima as pessoas, mas aprendendo o valor do respeito às instituições, jurídicas, políticas e de organização urbana. Tentar importar a polidez europeia nunca vai dar certo e vira uma desculpa para não se fazer nada. E acaba nos levando a simplesmente enaltecer a cordialidade, sem perceber que, sem o respeito às instituições e um projeto de coletividade, junto com ela vem a violência.

INTERPRETANDO

a)     O filósofo e psicanalista Andre Martins afirma que no Brasil se faz muitas propagandas enganosas, o que leva as pessoas a acreditarem que por aqui tudo está pacificado. Entretanto Martins mostra que, na verdade, os governos não querem gastar dinheiro – nosso dinheiro- para resolver as mazelas sociais, o que contribui para a montagem de uma fachada. Por que, segundo o texto, tal situação pode ser comparada à construção do Engenhão, que pode cair na cabeça da multidão? O que essa metáfora revela?                                                                                               



b)    Martins diz que o descaso com a primeira infância no Brasil, período em que a criança precisa se identificar com o outro, favorece, nas pessoas com menos estrutura psíquica, a ideia de que vivemos em uma “terra de ninguém” “onde tudo pode ser feito, inclusive os crimes mais hediondos” (2° parágrafo).  ) O entrevistado remete esse pensamento a algo cultural, e não instintivo. De que modo, à nossa maneira, essa situação pode ser revertida? A solução é copiar o modelo europeu de civilização?


c)     O seguinte pensamento: “ Eu nunca vou ter uma mulher perfeita, por isso vou estuprar para me sentir satisfeito” pode ser proveniente de uma pressão psicológica que suscita nos estupradores um distanciamento a esses ideais. Isso pode se expressar no indivíduo como forma de ressentimento, que em graves casos pode gerar violência para com o outro. O que esse fato tem a ver com o conceito de “retorno do reprimido”?

d)    O Brasil não possui guerras, mas a violência primária, segundo o psicanalista, acompanha a cordialidade do povo. A falta de polidez dá espaço para a cordialidade, resultando em extrema violência. Porém simplesmente copiar a polidez europeia não resolverá os nossos problemas. De quê precisamos? 

terça-feira, 19 de março de 2013

Quer escrever bem? Comece a escrever.

Nenhuma dica de como se escrever bem será eficaz se você não gosta de escrever.
De nada adianta tantos manuais e dicas de redação se, na hora de escrever, você começa a tremer e a imaginar que seu texto sairá um fracasso.
Se sua intenção é apenas treinar dissertação para se sair bem no vestibular, pois você acha a atividade de escrita um tédio, eu lamento. Lamento em dizer que você nunca vai saber escrever.

Vejo tanta gente dizer "Eu tirei nota boa na redação, portanto sei escrever" e se gabar de "Nunca ter feito uma redação na vida" achando que é o melhor produtor de texto. Numa dissertação, você será avaliado pela capacidade de expor seus argumentos, não pelo seu nível de conhecimento em estratégias de produção de texto. Emitir uma opinião é fácil. Difícil é saber organizá-la e fundamentá-la num texto.

Sabe fazer isso quem tem gosto pela escrita e que, por isso, estuda e conhece as estratégias de produção de textos. Escreve bem que não se cansa de reescrever o seu texto, passando horas tentando ajustar aquele parágrafo e refletindo sobre as ideias que estão sendo postas no papel.

Na vida só se aprende errando. Escrever só se aprende errando e concertando.

Engraçado que existem pessoas que acreditam que escrever é tarefa para poucos, talento dado por Deus. Mas de nada adianta um talento se ele não for aprimorado. De fato existem gente com uma certa facilidade de juntar as palavras num papel, mas esse talento se perde se não for exercitado. Todos nós possuímos a capacidade de escrever. Todos temos a capacidade de nos expressar por meio da linguagem. Se uma pessoa faz isso melhor que outra, não é porque a ela foi dado esse "talento", mas antes ela se exercitou, aprimorando a sua capacidade de escrever.

Portanto, se quiser escrever bem, treine, mas treine muito. Não pense que quem escreve o faz por talento, não precisando para isso se esforçar. A diferença entre quem escreve bem e quem não escreve bem está no fato de o primeiro, acima de tudo, esforçar-se pelo que gosta de fazer.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Como está seu nível de interpretação de texto?


Estado laico não é Estado ateu[1]
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS*
A esmagadora maioria do país crê em Deus. Se manifestações contrárias ao ateísmo forem vetadas, como querem alguns, será uma ditadura da minoria
No "Consultor Jurídico", leio artigo de Lenio Streck, eminente constitucionalista gaúcho. Ele, até com certa ironia e um misto de humor britânico e local, destrói todos os argumentos da pretensão de membro do Ministério Público que impôs ao Banco Central 20 dias para retirar das cédulas do real a expressão "Deus seja louvado".
Concordo com todos seus argumentos. Lembro que o referido procurador deveria também sugerir aos constituintes derivados, que são todos os parlamentares brasileiros (513 deputados e 81 senadores), que retirassem do preâmbulo da Constituição a expressão "nós, os representantes do povo brasileiro, sob a proteção de Deus, promulgamos esta Constituição".
Creio, todavia, que por ser preâmbulo da lei suprema, é imodificável. Terá o probo representante do parquet de suportar a referência ao Senhor.
Aliás, é bom lembrar que, sob a proteção de Deus, a Constituição promulgada permitiu que, pelos artigos 127 a 132, tivesse o Ministério Público as relevantes funções que recebeu e que ensejaram ao digno procurador ingressar com a ação anticlerical.
Tem-se confundido Estado laico com Estado ateu. Estado laico é aquele em que as instituições religiosas e políticas estão separadas, mas não é um Estado em que só quem não tem religião tem o direito de se manifestar. Não é um Estado em que qualquer manifestação religiosa deva ser combatida, para não ferir suscetibilidades de quem não acredita em Deus.
Há algum tempo, a Folha publicou pesquisa mostrando que a esmagadora maioria da população brasileira, mesmo daquela que não tem religião, diz acreditar em Deus, sendo muito pequeno o número dos que negam sua existência.
Na concepção dos que entendem que num Estado laico, sinônimo para eles de Estado ateu, só os que não acreditam no criador é que podem definir as regras de convivência, proibindo qualquer manifestação contrária ao seu ateísmo ou agnosticismo. Isso seria uma autêntica ditadura da minoria contra a vontade da esmagadora maioria da população.
Deveria, inclusive, por coerência, o procurador mencionado pedir a supressão de todos os feriados religiosos, a partir do maior deles, o Natal. Deveria pedir a mudança de todos os nomes de cidades que têm santos como patronos e destruir todos os símbolos que lembrassem qualquer invocação religiosa, como uma das sete maravilhas do mundo moderno, o Cristo Redentor, para não criar constrangimentos à minoria que não acredita em Deus.
O que me preocupa nesta onda do "politicamente correto" é a revisão que se pretende fazer de todo o passado de nossa civilização, desde livros de Monteiro Lobato às epístolas de São Paulo -não ficando imunes filósofos como Aristóteles, Platão ou Sócrates, que elogiavam uma democracia elitista servida por escravos.
Talvez o presidente Sarney tenha resumido com propriedade a ação do eminente membro do parquet ao dizer que, com tantos problemas que deve a instituição enfrentar, deveria ter mais o que fazer.
A moeda padrão do mundo, que é o dólar, tem como inscrição "In God We Trust". A diferença é que os americanos confiam em Deus e na sua moeda -nós "louvamos a Deus" na esperança de que também possamos confiar na nossa.

Interpretação de texto
1-      Por se tratar de artigo de opinião, o texto configura-se em primeira pessoa. Durante a progressão textual, o autor muda de voz? Se mudou, por qual motivo o fez?

2-      O autor do artigo de opinião posiciona-se diante da imposição de um membro do Ministério Público para que se retirasse das cédulas do real a expressão “Deus seja louvado”. Quais os argumentos que fundamentam o posicionamento do autor do texto? Ele concorda com a retirada da expressão?

3-      Qual a conjunção cabível no 2° parágrafo, depois do primeiro ponto?

4-      O autor diferencia Estado laico de Estado Ateu. Quem estaria confundindo essas duas modalidade de Estado, segundo o texto,  seriam aqueles que acreditam que o Estado não deve expressar nenhuma crença religiosa. Isso é possível?

5-      A crença em Deus sempre foi difundida. Prova disso é que em Sócrates e em Platão, encontra-se referência a um ser superior. Um Estado é ateu quando a maioria de sua sociedade nega a existência de Deus, o que não ocorre com o Brasil. Sendo o país religioso, no que se refere a uma maioria que acredita em Deus, pode-se dizer que vivemos em um Estado laico?


[1] Texto disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/80145-estado-laico-nao-e-estado-ateu.shtml
* IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 77, advogado, é professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra.